A DEMOCRACIA NA PÓS-VERDADE:
APARANDO AS ARESTAS NAS HIPER-BOLHAS!
Para
alguns povos, retirar o calçado à porta da entrada da residência
demonstra respeito do visitante para aquele com o qual se visita.
Para outros povos, indubitavelmente ao adentrar no recinto de sua
casa você deve retirar os sapatos e deixar toda a sujeira que trouxe
da rua do lado de fora.
No
espetáculo democrático, o olhar-se ao espelho é realmente
assombroso, pois, nunca um pleito fora tão desgastante,
esquizofrênico, estarrecedor e imprevisível quanto o pleito atual
de 2018.
Atentar-se
simplesmente para os resultados da disputa presidenciável é reduzir
drasticamente o quão assustadora e efervescente foram as eleições
no Brasil - o que aliás deixou o mundo estarrecido e bastante
preocupado, pelo menos por uns 15 segundos, entre um furacão aqui,
um tsunami ali, chamando tanta atenção quanto um twíte do Trump.
Ironias
à parte, o processo democrático brasileiro realmente chamou a
atenção pelo ineditismo da forma com a qual candidatas e candidatos
se degladiaram – assim como seus eleitores – em busca do esforço
incansável de demonstrar uma ideia, um projeto, um gosto, um ideal.
Artistas mundiais mobilizaram suas redes e seus shows (sim mundo, nós
vaiamos o Roger Waters e talvez com razão), mobilizamos analistas
políticos tanto europeus quanto das grandes redes de comunicação
estadunidenses como NYT e Fox, além de termos inspirado a alteração
na legislação eleitoral do Chile, com relação à prevenção das
famigeradas “fake news” (creio que de tão íntimas não seja nem
preciso mais aspas).
Umberto
Eco disse certa vez que as redes sociais deram voz aos idiotas. Não
sei se ele escreveu isso em sua page fan no facebook ou publicou
através do instagram. Theodor W. Adorno, filósofo da Escola de
Frankfurt, dizia que a arte deveria ser destinada a uma minoria
intelectualizada, uma “elite”, pois o acesso aos pobres criava o
risco da massificação, através da indústria cultural. Pois bem,
mesmo que os nobres pensadores reivindiquem a análise de forma
conservadora, para uma elite de iluminados, neste ano o que
prevaleceu foi a enxurrada de zaps, análises políticas, discussões
filosóficas, ideológicas, distorções e construções históricas
( o nazismo é de esquerda), que foram criando o pano de fundo para
um sem número de brigas tanto virtuais, como no campo da realidade.
Com certeza o natal deste ano se tornará um evento mais interessante
que simplesmente as piadas cafonas daquele seu tio
homofóbico-machista-misógino-racista-politicamente incorreto,
inconveniente e principalmente sem graça: Esse ano ou ele apanha, ou
realmente vai passar o natal sozinho mandando piadas pelo zap zap.
Creio que muitas famílias nunca mais se reunirão novamente, uma
grande besteira (ou alívio).
Mas
o que de tão diferente nos ocorreu neste pleito que nos difere dos
pleitos anteriores entre Hilary x Trump nos E.U.A. e Dilma x Aécio
no Brasil? A diferença, segundo nos apontaram os observadores
internacionais da OEA – Organizações dos Estados Americanos, diz
respeito a enxurrada de notícias falsas ou fake news sobre o
eleitorado brasileiro, trazendo uma gigantesca cortina de fumaça
sobre o processo eleitoral, já que no pleito dos norte-americanos o
fb foi intimado a criar mecanismos para barrar tais notícias, o que
porém para o Brasil com o “zap zap” e não o “face” (mania
cafona nossa de apelidar coisas escrotas), tais barreiras foram
inúteis.
Deve-se
levar em consideração que em 1989, no segundo turno entre Lula e
Collor a parada foi tão intensa quanto agora, me recordo bem que no
auge dos meus 09 anos, acabei quase que saindo na mão com um
baixinho atrevido “Collorido” da minha rua (hoje de esquerda,
acho que a briga valeu), num pleito que tinha 845 candidatos a
presidente no primeiro turno que iam de Mário Covas, Paulo Maluf,
Ulisses Guimarães, Leonel Brizola, a Afif, Enéas e o saudoso
Marronzinho.
Há
de se apontar também o índice de renovação na câmara federal e
senado; o crescimento do nanico PSL, até então desconhecido partido
político antes do fenômeno Bolsonaro; o efeito Tiririca elegendo
Kim, Frota, Janaína; a eleição de Hélio Negão no RJ, que passou
de desconhecido para, com o apoio do agora eleito senador no RJ
Flávio Bolsonaro, deputado mais votado, superando Marcelo Freixo; o
Rio de Janeiro ou Hell de Janeiro aliás, tem uma vocação ou um
hábito ou “uma missão” para eleger outsiders, principalmente
evangélicos, já que o recém-eleito Governador do Estado, Wilson
Witzel, do Partido Social Cristão, disputava a sua primeira eleição
e que curiosamente pediu exoneração do cargo de juiz federal para
concorrer à vaga, creio que devido as ameaças de morte sofridas no
exercício da função. Será?
Há
sim, cabe citar que o PSOL deixou de ser uma chapa de DCE e virou um
partido político, Ciro abriu um flanco progressista dentre a
unanimidade petista, o PSB e o PSDB continuam vivos e bem vivos, além
do partido de Temer.
Outro
dado importante é que apesar do chamado “mito” ter sido eleito
presidente, com direito ao senador recém-derrotado por dois
estreantes na política capixaba Magno Malta puxando uma oração
junto aos afiliados do Bozo, uma cena deplorável de representação
dramática por atores de terceira e com abrangência internacional –
quiçá, interplanetária, finalmente um mito caiu nessas eleições:
A tal obrigatoriedade do voto. No RJ por exemplo, o número de votos
brancos, nulos e abstenções no segundo turno perdem em 100 mil para
o número de votos do candidato vencedor – o que tem um amplo
significado para as futuras estratégias políticas eleitorais.
Na
escalada da onda conservadora que elegeu um meme como seu presidente,
um aspecto foi fundamental para a sua ascensão: A consolidação de
uma marca através do canal certo de propagação de imagem. Tenho
postagens minhas de 2011, já zoando esse milico grotesco.
O
Outsider mor, MemeMito, desde a década de 90 é conhecido por ser um
político bilíngue – fala português e merda pa carái – o que
por increça que parível, no melhor estilo “quanto pior melhor”,
nos parece ser uma estratégia que o alavancou até a presidência do
país (“Ó vida, ó azar”). O internacionalmente conhecido como
Trump Brasileiro, veio comendo pelas beiradas mas sempre dando um
jeito de chamar a atenção e como dizem nesse mundo de rédeas
sociais “fidelizar” seu público conservador de alto déficit
educacional (moral?) e principalmente surfando num neo-populismo
antipetista abissal, que aliás, teve uma parcela de contribuição
gigantesca com a estratégia suicida, personalista, porém genial do
ex-presidente Lula, em trazer o debate para o campo do plebiscito.
Mas
o PT foi realmente genial? Talvez você deva estar se questionando.
Eu digo que sim, pois o PT sai como o partido que elegeu mais
governadores (4 + Renan Filho, um “aliado” ), e é o partido que
no geral elegeu o maior número de políticos, 148 no total, sendo o
maior número de deputados federais e estaduais eleitos e o terceiro
maior número de senadores. No jogo político, vão-se os anéis mas
ficam-se os dedos e para o PT, a arriscada estratégia de jogar
Haddad de última hora no pleito, quase colou e recolocou o PT
enquanto liderança do campo progressista brasileiro, aliás, fato
que alguns Ciristas não conseguem compreender, pois o maior partido
progressista da América Latina abriria mão de sua hegemonia
política e a entregaria nas mãos de outro grupo político, mesmo
que alinhado com parte de suas idéias, mas com divergências
públicas notórias, o direito de disputar o pleito ao executivo?
Lula no aconchego de sua cela em Curitiba, lendo mais livros por
semana que grande parte dos brasileiros leram na vida, entra agora em
disputa com Mujica e Mandela, só falta o tempo de cadeia. Que a
prisão do grande líder populista brasileiro deste século faça com
que seu eleitorado reflita acerca do autoritarismo presente também
em uma postura pouco agregadora por parte dos progressistas, o qual
aliás Bolsonaro em sua campanha esteve mais próximo de Lula do que
o próprio Haddad, pois com seu neo-populismo de extrema-direita, sua
forma direta e simples de falar com o povo e seu discurso raivoso e
manifestações toscas de racismo, machismo e homofobia, nos remetem
muito a um Lula sindicalista que gostava de uma cachacinha e que em
2002 resolveu botar um terno pra ganhar a eleição e falar um
discurso mais moderado, que o crivou da alcunha de “Lulinha Paz e
Amor”, causando ojeriza, e ainda causa, aos intelectuais da
época, ao verem num torneiro mecânico a impossibilidade de um líder
estadista, mas que convenhamos nunca se pautou numa estratégia de
ódio aos pobres para colocar seu nome em destaque.
Bolsonaro
junta o que há de pior na política: o discurso de ódio aos pobres
atrelado a teologia da prosperidade dos pastores mau-caráter das
igrejas evangélicas.
O
Filósofo Jürgen Habermas, em sua palestra “A modernidade: Um
projeto inacabado” (Setembro de 1980), nos traz à reflexão que o
moderno, ou “modernus”, em sua acepção latina, simboliza a
distinção de uma era – no caso a romana e pagã - para o advento
de uma nova era a partir do século V, onde no cristianismo se
representava a vanguarda para o pensamento civilizacional. Porém,
para Habermas, o moderno não foi uma cisão completa e sim uma
imitação do modo antigo. Somente com o iluminismo é que a ideia de
modernidade não significava também o resgate das ideias antigas: ¨A
característica de tais obras é o ‘novo’ que há de ultrapassar
e tornar-se obsoleto pela novidade do próximo estilo. Contudo,
enquanto o que é meramente ‘stylish’ logo vem a sair de moda.
Aquilo que é moderno preserva elos velados com o clássico”
(HABERMAS, 1980).
Neste
pleito exclusivamente, vemos a demonstração de resistência e de
disputa pelo discurso entre os campos progressistas, pautando uma
ética globalizante, de defesa da diversidade, estado laico e maior
racionalização do ethos social em contraste com a tradição – e
aí nos remetemos a Habermas novamente no que diz respeito a sua
“Teoria da Ação Comunicativa” - pois segundo o filósofo, é
por meio da linguagem que as pessoas interagem umas com as outras,
como também reproduzem e renovam o saber cultural, orientando tanto
a compreensão quanto a forma de estabelecerem-se em sociedade,
frente um sistema teórico que não contempla no todo a complexidade
da vida prática. Sendo assim, questões como a defesa da propriedade
privada, a moralização da política e a luta pelos ideais cristãos
de sociedade como a defesa da família, a não ampliação a medidas
contraceptivas no que se refere ao aborto e a políticas que alterem
a percepção acerca do uso de drogas recreativas, transformando-as
em uma questão de saúde pública e não como aspectos meramente
criminais, assim como opção de foro íntimo e a reserva de
mercado para somente algumas modalidades de drogas, discursos estes
de uma tradição arcaica que nos remete aos anos 60, e talvez por
isso uma identificação tão forte com os valores de 64, levando pelo ralo a defesa do direito à diversidade política – e vale
reiterar o incorreto termo “minorias” para um grupo majoritário
numericamente, mas sem articulações de base incisivas que reflitam
em sua representatividade política – o que levou a fácil
associação entre a manifestação política de Bolsonaro e seu
eleitorado, de cunho privado dentro do contexto brasileiro, alinhadas
as ideias do regime nazista de Hitler e fascista de Mussolini.
O grande erro do PT foi lá atrás, como já me disse o Professor Sérgio Fonseca, quando vira as costas para o campo progressista e autoritariamente indica Dilma para o pleito sucessivo do legado de Lula, um verdadeiro poste político. Com a crise de 2008, as diversas acusações de corrupção levantadas desde o mensalão de 2006, como se o PT tivesse inventado a corrupção, pois o PT não inventou a corrupção, inventou pobre e preto dentro da Universidade Pública e andando de avião, o que convenhamos é muito pior, e a partir daí o país ladeira abaixo com o golpe, a lava jato made in usa e sua judicialização da política, pois, em qualquer país sério, Sérgio Moro teria pego uma boa cadeia pelo grampo a presidente Dilma (nos USA era cadeira elétrica).
O
que Bolsonaro e as bolhas nos trazem de novo neste pleito é que
aquilo que antes mantinha-se velado e discutido no privado, em âmbito
particular nas esferas sociais brasileiras, mas que reproduzem-se
claramente nas instâncias de poder e resistem firmemente a
questionamentos e mudanças no foco das decisões, como a livre
manifestação racista, as opiniões misóginas e os posicionamentos
políticos machistas, o desprezo pelas relações homoafetivas, que
deslocam tais grupos a cidadãos e cidadãs de segunda classe, nunca
foi trazido de forma tão explícita à opinião pública. A
tentativa de sabatina de William Bonner no jornal nacional a
Bolsonaro reflete bem isso, quando em determinado momento o candidato
encurrala uma das maiores emissoras de comunicação do mundo dizendo
que ela apoiou a ditadura militar. Que moral teria a Rede Globo,
grande financiadora da publicidade eurocêntrica, do modus operante
heteronormativo de sua estética artística, o seu jornalismo racista
– aliás a jornalista Rafaela Marquesini da afiliada Globo local
acaba de manifestar no jornal de meio-dia que um ato de racismo
cometido pela polícia militar do Espírito Santo contra a livre
manifestação pública de jovens em uma comunidade periférica de
Vitória, com tiros de bala de borracha, jogando meninas adolescentes
no chão, no melhor estilo tiro, porrada e bomba, dizendo que “A
PM agiu duro...”, como se isso fosse corriqueiro e aceitável em
bairros de maioria branca e de classe média em mesma situação.
Nas
vésperas da eleição, o organizador de um evento em que eu
participava pegou o microfone e disse que “eleitor de bolsonaro
presente tinha que meter o pé senão ia levar ripada”. Daí,
pergunto: Bolsonaro não representa realmente um retrato fiel do
brasileiro e da brasileira médios?? Quantas vezes não nos
policiamos em nosso dia-a-dia acerca de manifestações de
intolerância e saindo um pouco na tangente da discussão sobre o
estigmatizado “politicamente correto”, como nós nos posicionamos
em nossas relações profissionais, em nossas relações diárias de
trabalho e consumo, que não de forma individualista, beligerante,
egoísta, injusta, raza, dando ouvidos a fontes de informações
duvidosas, ou mesmo difamando pessoas, desconstruindo fatos e
conceitos e relativizando sofrimentos, para que tão somente a nossa
justa e honrosa felicidade venha à tona?
A glamoralização
da violência pela mídia, assim como a estigmatização racista das
comunidades periféricas; a ineficiência do aparelho público,
gastando de forma inadequada montantes de recursos que privilegiam
determinados grupos econômicos em detrimento da maioria; a omissão
da sociedade, de nós indivíduos, acerca das estruturas de poder, do
funcionamento destas estruturas, nos trazem o cenário atual de 60
mil assassinatos por ano, miséria, corrupção e milhões de
desempregados. Será que a resposta para os nossos anseios caíra de
pára-quedas?
“Os
homens que se escondem em cavernas como trogloditas são privados em
seu modo de vida particular das relações para com a sociedade, que
é tomada então como algo objetivo e exterior a eles: Enquanto os
homens que vagueiam como nômades nas grandes massas são privados em
sua existência alienada da possibilidade de encontrar a si mesmos
(HABERMAS, 2002)”.
“...pois
bem, o senhor é conhecedor dos crimes humanos, da besta da carne e
osso que assola o dia até anoitecer e do anoitecer até o dia. Pois
bem, o Anticristo é a redenção do puro. Todo crime é culpa da
compaixão, do fraco. Onde todos são fortes não há tirania...” (
Trecho de Ponto Morto, romance de Saulo Ribeiro, pag. 83).
Fico
com a minha amada Vó, que a Divindade a tenha em um bom lugar, que
já dizia: “Arde mais sara, amarga mais cura!”. E que assim
seja!!
Emmanuel 7Linhas
30/10/2018