quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Minha primeira vez...




Minha primeira vez...

Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece.
Eu não me esqueci da minha.
Dizem que a primeira vez nunca é boa e você faz tudo errado.


Comigo não foi diferente.

O quarto estava morno. Minhas mãos, frias. Meu coração, quente. Minha cabeça, em parafuso.
Ela estava deitada na cama como se não se importasse com o que ocorria ao seu redor.A penumbra em que nos encontrávamos era incomodamente aconchegante. A luz do sol passava em feixes pelas frestas da janela formando pequenas linhas de vida que cortavam o recinto. Dois desses feixes alisavam aquele rosto pálido e aveludado que descansava em cima de um travesseiro. O lençol a cobria até a cintura, guardando delicadamente cada centímetro de suas pernas. Apenas seu rebelde pé esquerdo repousava de forma graciosa para fora das cobertas. Me aproximei pelo lado da cama de maneira tosca. Meus braços pareciam pesar 50 kg cada. Minhas pernas tinham vida própria. Eu não coordenava meus movimentos. Meu olhar era fixo, como o de um leão prestes a atacar sua presa.

Já ela demonstrava ter total controle da situação. Um olhar vago, meio despreocupado, de certa forma até pretencioso. Focava o horizonte, fingia não me perceber ali. Por um momento nossos olhares se cruzaram. Não foi preciso dizer uma palavra. Ela precisava de mim. Eu fui.

Como qualquer iniciante, queimei a largada. Avancei com voracidade. Subi na cama me apoiando em meus joelhos. Antes que ela pudesse reagir abracei sua roupa com as mãos. Como um lobo voraz abocanhei o meio de sua camisa com os dedos. Em um único puxão, abrupto e seco, libertei seu peito daquela prisão. Ela não usava sutiã. Os bicos de seus seios me encaravam perdidos. Mal sabiam eles que estávamos juntos.

Era chegada a hora. Por 5 dias eu a massageei. O relógio contou apenas 10 minutos, mas eu sei que se passaram dias. Meus braços não se suportavam. Meus ombros estavam castigados. Ela pareceu desistir de mim. Durante todo o tempo não reagiu às minhas investidas. Eu falhei.

E assim a vida se foi, como um assovio inocente em meio a ventania...

O monitor cardíaco, que repousava ao lado da cama, registrava ZERO batimentos por minuto. Uma linha vermelha e reta cortava a tela soltando um som contínuo que teima em não sair da minha cabeça. Ele me dizia o óbvio, escancarava-me o fim. A RCP - reanimação cardiorrespiratória - ou como dizem por aí, a massagem cardíaca, não surtira efeito. As enfermeiras, que me auxiliaram, cederam-me dois tapinhas nas costas. Não há nada mais humilhante do que os malditos tapinhas de consolo nas costas. Pareciam ser tiros de misericórdia adentrando meu peito. Rasgavam-me o tronco como um chicote de um senhor de escravos.

Minha vergonha era lancinante. Ela, por outro lado, parecia não se preocupar. Desde o início mantivera aquele mesmo olhar de desapego. As enfermeiras cobriram seu rosto com o lençol. Era o fim do espetáculo. As cortinas se fecharam, e não houve sequer um aplauso.

Saí do quarto. Tirei meu jaleco. Ele estava limpo, alvo, impecável, nem parecia ter me coberto durante o pior momento da minha vida. Alguns chamam médicos de Anjos. Hoje fiz uma entrega para a morte. Naquele quarto duas pessoas tinham perdido a inocência, a diferença era que uma ainda continuava com o coração a bater. Segui torto pelo corredor do Hospital. Era hora de ir embora. Era hora de fumar um cigarro.

José Vitor Rassi Garcia

http://www.camarabrasileira.com/euv12-021.htm
(Via José Vitor Garcia)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

DESUMANIZAÇÃO - Por Maria Regina Alves


As pessoas simples, da vida, não estão inclusas na sociedade do consumo e da imagem. Não usam Prozac nem plástica; não buscam a felicidade intermitente e a juventude eterna; não calam suas vozes internas e expõem seus mais íntimos desejos e fraquezas.
Vivem sem descartar pessoas, simplesmente, como um aparelho de tv. Choram o que precisa ser chorado, riem de si mesmos, falam sem a lança nas palavras e sonham... como se cada sonho lhe oferecesse a possibilidade de existir mais de uma realidade.
Estar out-side virou sinônimo de invisibilidade, principalmente quando não somos “merecedores” dos cartões de crédito, das milhagens... tudo que nos leva direto ao objeto de desejo forjado pelo triângulo capital-mercado-propaganda.
Cabe aos meios de comunicação criar necessidades, já determinadas por um grupo invisível, particular e limitado - formam a seita do capital, e lançar uma cortina de fumaça, através da espetacularização da vida.
A democracia é ficção, sendo o essencial ter e construir sem critério, bastando ser “digno”, “escolhido”, exercitando baixa criatividade e alta voracidade frente ao que determina o marketing.
Hoje temos o isolamento dentro de manadas, ou seja, mentes e corpos feito ilhas, porém buscando a visibilidade, ser imagem aos olhos do “outro”.
Um comportamento de exacerbação do narcisismo, declínio de valores e necessidade de eternização, mesmo sem qualquer fim justo. Apenas a continuidade de um espetáculo que duvido ser da vida.



Maria Regina Alves

TANTA GENTE - Por Dieymes Pechincha





  • É da roda, da ciranda, da corda, do boi, da dança.
  • Que samba, criança, que pula, que gira, que ri.
  •  
  • Menino criado descalço,
  • De dedo esfolado, de unha encravada,
  • Mão suja de terra, sorriso com todos
  • os dentes (os que tem, e os que virão.).
  •  
  • Um bolso que mais leva brinquedo
  • que lápis.
  • Uma bolsa com todos os grandes inventos.
  • Pião, Bola, Gibi, Balas... Balas... Balas...
  • Catava café, pra ajudar... 
  • Ganhava um trocado, final de semana.
  • Balas... Balas... Balas...
  •  
  • Vendia manguitas do quintal.
  • Comprou colete pro futebol.
  • Era o reserva, que foi pra final,
  • entrou no finzinho...
  • Que foi pros pênaltis.
  • Bateu de bico, fez GOOOOOL!!!!!!
  • "UFA!"
  • Não foi dessa vez.
  • Dedão latejou, inchou, até hoje dói.
  • Depois da final já foi titular.

  • Viajava pouco. Gostava das moças.
  • E nunca entendia por que "só amigos".
  •  
  • Melhores amigos... São muitos!
  • Irmãos, daqueles que só se conta, 
  • e só se percebe quando é pra
  • saber perceber.
  • Aos montes, e ama todos, beija,
  • abraça, morde, leva pra casa.
  •  
  • Poucas vezes se encontram.
  • Mesmo assim estão juntos, ali,
  • em algum lugar abstrato,
  • subjetivo, in-concreto, porém, real!
  •  
  • Inimigo?
  • Um!
  • E ele um dia cairá.
  • Enquanto o dia não chega, estudemos,
  • Mas ele um dia cairá.
  •  
  • Estudar... Entender...
  • Tanta gente contribui pra isso.
  • Tanta gente que nem tem isso.
  • Tanta gente pra ser ouvida.
  • Tanta tarefa pra ser cumprida.
  • Tanta gente num só umbigo.
  • "Tanta mente", tanta mentira.
  • Tanto sorriso amarelo.
  • Tanto medo de amarelar.
  • Tantos "tantos" aqui dentro.
  • No entanto, tanta gente de fora.
  •  
  • Gente da roda, da ciranda, da corda, do boi, da dança.
  • Que sambou, criançou, que pulou, que girou, que sorriu.
  •  
  • Que também foi criado descalço, de dedo esfolado,
  • unha encravada, mãos sujas de terra, sorrisos, sorrisos,
  • sorrisos...
  •  
  • De bolsos lotados de bolinhas, catavam café, catavam vento.
Cadê?
  • Quem foi pra final levou o troféu.
  • Tanto, tanto, tanto.
  • Tanta gente lá fora.
  • Tanta potencia.
  • Tanto universo desconhecido.
  • Tanta gente interrompida.
  • Tanta gente interrompida.
  • Tanta gente... 
Dieymes Pechincha

segunda-feira, 23 de abril de 2012

IMPROVISO EM PEQUIM - Allen Ginsberg






Escrevo poesia porque a palavra inglesa Inspiração vem do Espírito Latino,
respiração, e eu quero respirar livremente.
Escrevo poesia porque Walt Whitman deu ao mundo permissão para falar
com sinceridade.
Escrevo poesia porque Walt Whitman abriu o verso-linha para que a
respiração desobstruída passasse.
Escrevo poesia porque Ezra Pound viu uma torre de marfim, apostou num
cavalo errado, deu permissão aos poetas para escreverem em vernáculo falado.
Escrevo poesia porque Pound mostrou aos jovens poetas do acidente as imagens
escritas da poesia chinesa.
Escrevo poesia porque W. C. Williams vivendo em Rutherford escreveu em
dialeto de Nova Jersey "pontapeio-te o olho", perguntando como medir
no pentâmetro jâmbico.
Escrevo poesia porque o meu pai era poeta e a minha mãe da Rússia falava
comunista, tendo morrido numa casa louca.
Escrevo poesia porque o meu jovem amigo Gary Snyder sentou-se para ver
os seus pensamentos como parte do mundo fenomenal exterior
assemelhando-se este a uma mesa de conferência em 1984.
Escrevo poesia porque sofro, nasço para morrer, de problemas renais e pressão
alta, como todas as pessoas que sofrem.
Escrevo poesia porque sofro com a confusão de não saber o que as outras
pessoas pensam.
Escrevo porque a poesia pode revelar os meu pensamentos, curar a minha
paranóia e a paranóia de outras pessoas.
Escrevo poesia porque a minha mente vagueia por assuntos como sexo, política
e meditação Budha Dharma.
Escrevo poesia para tornar mais nítidas as imagens da minha mente.
Escrevo poesia porque levei os Quatro Votos do Bodhisattva: as conscientes
criaturas que se libertam e que não possuem sombra no universo,
a minha ignorância gananciosa a passar pelo infinito, as situações em que me
encontro e que são incontáveis quando o céu está bem, quando acordados
os caminhos da mente.
Escrevo poesia porque esta manhã acordei a tremer de medo daquilo que
poderia dizer na China.
Escrevo poesia porque os poetas russos Maiakovski & Yesenin
cometeram suicídio e alguém precisa de lhes falar.
Escrevo poesia porque o meu pai recitando o poeta inglês Shelley e o
poeta americano Vachel Lindsay deu o exemplo em voz alta – respiração
inspirada no grande vento.
Escrevo poesia porque escrever sobre questões sexuais era censura
nos Estados Unidos.
Escrevo poesia porque os milionários dos lados leste e oeste andam
em limusinas Rolls-Royce e as pessoas pobres não têm dinheiro para
consultarem o dentista.
Escrevo poesia porque meus genes e cromossomas se apaixonam por
rapazes e não por raparigas.
Escrevo poesia porque não tenho alguma responsabilidade dogmática
um dia depois do outro.
Escrevo poesia porque quero ficar sozinho e ao mesmo tempo
quero falar com as pessoas.
Escrevo poesia para responder a Whitman, a pessoas novas daqui por
dez anos, falar com velhos tios e tias ainda vivendo próximos de
Newark, Nova Jersey.
Escrevo poesia porque ouvi os "blues" dos negros na rádio em 1939,
Leadbely & Ma Rainey.
Escrevo poesia inspirado pelas jovens e alegres canções dos
Beatles envelhecidas.
Escrevo poesia porque Chuang-Tzu não sabia dizer se era uma borboleta
ou um homem, Lao-Tzi dizia que a água corre em declive, Confúcio dizia
"honra os mais velhos", e eu queria honrar o Whitman.
Escrevo poesia porque o crescimento em excesso do gado da Mongólia
para os EUA destrói a relva nova e a erosão propicia desertos.
Escrevo poesia usando sapatos de animal.
Escrevo poesia porque a primeira ideia é sempre a melhor.
Escrevo poesia porque nenhuma ideia é compreensível excepto se
manifestada em particular: "Não apenas as ideias, mas as ideias dentro de coisas".
Escrevo poesia porque o Dalai Lama diz: "As coisas são símbolos de si mesmas".
Escrevo poesia porque os títulos dos jornais dizem que há um buraco negro
no centro da nossa galáxia e somos livres para observar.
Escrevo poesia porque da Primeira Guerra Mundial, da Segunda
Guerra Mundial, da bomba atómica e da Terceira Guerra
Mundial (se a quisermos), delas não preciso.
Escrevo poesia porque o meu primeiro poema "Uivo", não pensado
para ser publicado, foi perseguido pela polícia.
Escrevo poesia porque o meu segundo poema "Kaddish" homenageava
o paranirvana da minha mãe num hospital psiquiátrico.
Escrevo poesia porque Hitler matou seis milhões de judeus e eu sou judeu.
Escrevo poesia porque Moscovo disse que Estaline mandou exilar 20 milhões
de judeus e intelectuais para a Sibéria e 15 milhões nunca mais voltaram ao
Stray Dog Café, em São Petersburgo.
Escrevo poesia porque eu canto quando estou só.
Escrevo poesia porque Walt Whitman disse: "sou uma contradição em mim?
Tudo bem então eu contradito-me (sou largo, contenho multidões)".
Escrevo poesia porque a minha mente se contradiz, um minuto em Nova Iorque,
no minuto seguinte nos Alpes.
Escrevo poesia porque minha cabeça prende 10.000 pensamentos.
Escrevo poesia porque sem razão não há porquê.
Escrevo poesia porque é a melhor maneira de usar a cabeça dizendo tudo.
Por seis minutos ou por uma vida inteira.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

UMBANDERIA - PÓ DE SER???







Reflexão Gestacional sobre Pó de Ser Emoriô ( Umbanderia),


O artista, o artífice, o artesão, fomentador, pesquisador , executor de uma ideia artística, destina-se ao belo, a provocar o belo. A obra surge da sensibilidade do artista, o artista surge após ter sua obra apreciada ao público, devorada, ruminada, experimentada.
Toda expressão artística deve ser vivenciada, pois como disse o Grandioso Gênio Sérgio Sampaio: “Um livro de poesia na gaveta não adianta nada, lugar de poesia é na calçada...”
O século vinte e um inaugurou um tempo futuro sem presente, onde estamos em extremo contato com o passado, voltados para o “de mais recente”, num fluxo constante de atualizações, onde meios são os fins, tendo na arte o congelamento, a beleza atemporal, sensorial, intelectual e instintiva; passiva e ativa a dialogar com escolas de todas épocas, técnicas, espíritos, estados de espírito, fim em si mesmo, tendo todos enquanto expressões da obra de arte: a obra, o artista e o público.
O dinamismo tecnológico e sua abrangência, a acessibilidade de inúmeras interfaces linguísticas, é eficiente mecanismo de produção e disseminação de conceitos, elementos, produtos, mas no caso da arte, o esperado é atingir um lugar onde não se possa imaginar, e a maneira como os diversos elementos disponíveis são utilizados ou não utilizados, conhecidos ou não conhecidos, incidem cada vez mais no resultado dessa ação.
A Arte enquanto campo de conhecimento move todas as outras áreas no seu acontecimento, no intercâmbio de ideias, regiões, perspectivas e atualizações, alcançando o viés necessário ao artista e ampliador de novas culturas, de toda cultura.

UMBANDERIA” é o parto por inteiro, a fonética, a estética, o movimento e a sonoridade. A promoção desse encontro, é o momento o qual elege-se uma estréia, um cair do pé pelo fruto maduro (ou não, como diria caetano), ex-pôr, ex-porte, dar-se à vida, à distinção, a procura da batida perfeita, o fluxo do coração, é a busca incessante pelo degrau dos gênios da sensibilidade e beleza, a hora de estar à prova. Os Tambores de Aruanda celebram sem medo, do cume da montanha o leão ruge, o clarão dos raios, a beleza das cachoeiras a força das marés, o fogo e sua transformação:
Quem não guenta com mandinga não carrega patuá...”        


Emmanuel "7 Linhas"

16 de março de 2011

quarta-feira, 21 de março de 2012

TEORIA DO MEDALHÃO



MACHADO DE ASSIS

Diálogo

- Estás com sono?
- Não, senhor.
- Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
- Onze.
- Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
- Papai...
- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
- Sim, senhor.
- Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.
- Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?
- Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos...
- É verdade, por que quarenta e cinco anos?
- Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.
- Entendo.
- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
- Mas quem lhe diz que eu...
- Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.
- Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.
- Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
- Como assim, se também é um exercício corporal?
- Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.
- Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?
- Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra, razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses - suponhamos dois anos, - reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...
- Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...
- Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.
- Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.
- Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: - ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas; no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De outiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular idéias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira esperta e afreguesada, - que, segundo um poeta clássico,
Quanto mais pano tem, mais poupa o corte,
Menos monte alardeia de retalhos;
e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.
- Upa! que a profissão é difícil!
- E ainda não chegamos ao cabo.
- Vamos a ele.
- Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste?
- Percebi.
- Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a "alavanca do progresso" e o "suor do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria. No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporters dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
- Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.
- Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
- E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits da vida?
- Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.
- Nem política?
- Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico.
- Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?
- Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: - ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
- Farei o que puder. Nenhuma imaginação?
- Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.
- Nenhuma filosofia?
- Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia da história", por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.
- Também ao riso?
- Como ao riso?
- Ficar sério, muito sério...
- Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente, - e este ponto é melindroso...
- Diga...
- Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
- Meia-noite.
- Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.
FIM

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

DÉ-BIAL


Enquanto a população
Clama por justiça social, saúde, educação
Na televisão,
Pedro Bial - aquele o qual
Seria ofensa aos bichos chamá-lo de animal
Pergunta sem constrangimento
Em um mau caráter momento
Capaz de impelir a uma múmia do egito indignação
Algo que nos corrói por dentro
A troca do talento pelo status quo da bestialização
Fruto da nossa falta de grana, falta de estímulo, cultural escravização
Porque os juros são tão altos?
Os impostos tão numerosos, basicamente impostos ao trabalhador, ao empregador, a quem tem menos condição
E os direitos, de ir e vir, de assistir e ser assistido, e poder com dentes na boca sorrir
A obtusa sem vergonhagem e seus aumentos de passagem
A policia na reminiscência da ditadura, paga com nosso dinheiro. Contradição ou a mais pura viagem?
Sabendo-se que a Televisão é concessão, pública ou no púbis de nossos irmãos??
Que porra é essa que está acontecendo
Yo no creo
Mas muitos bestializados
Pseudo-evangelizados
Consumidos e consumados
Aplaudem e acham a mais ingênua e interessante diversão
Quando são impelidos pelo débi-all, voltando-se sem igual
A toda nação:

"BRASILEIR@ BURR@, SENTIU, CONSENTIU, CÚ-SENTIU????"


Emmanuel 7 Linhas